sexta-feira, 16 de outubro de 2009

O Fator X dos Judeus.


Cinquenta anos de petróleo e de ilimitados recursos, dezenas de países e milhões de cidadãos, não foram suficientes para dar um só Premio Nobel ao mundo. Cinquenta anos de Israel, com escassa população e recursos limitados, deram (ao mundo) mais de uma dezena.


Calmos, todos quietos. Que não se assuste Maruja Torres nem toda a corte dos que martelam os hereges israelenses e que habitam nas esquinas do dogmatismo progressista. Este artigo não vai ao Oriente Médio, talvez porque o verão, apesar de suas sombrias notícias, resiste a abandonar as boas intenções. Ademais, a persistente lógica perversa da maldade terrorista cai por seu próprio peso, mais além das tentativas que alguns têm em demonizar tudo o que cheira a ocidental, e perdoar paternalmente o que se cozinha nas montanhas onde cavalgam os novos Almanzor1. Em todo este denso e complexo conflito, entre uma ideologia niilista totalitária, com vocação imperial, e o código ético-político da modernidade, há os que são tão anti-ocidentais, que acabam sendo antimodernos. E por modernidade entendo os valores históricos que se consolidaram num modelo de sociedade livre. Para dizê-lo com um símile da própria colheita que me parece simpático: há os que vêem um padre católico e lhes sai um eczema, mas se vêem um imã nas montanhas do Líbano, têm um orgasmo. Imagine-se a histeria se vêem um rabino...

Dizia que o artigo era de outra coisa. Na quinta-feira passada, nesse edifício mágico de Puig i Cadafalch que hoje abriga a Casa Ásia, vivemos uma estranha e feliz tarde de verão. O professor de ciências políticas Xavier Torrens e Jaime Huberman, porta-voz da comunidade judaica Bet Shalom da Catalunha, convidaram-nos a refletir sobre o "fator X dos judeus", talvez inspirados por esse estimulante programa musical que faz sucesso no Quatro. Que fator cultural, religioso, histórico, inclusive até genético poderia explicar as surpreendentes cifras que rodeiam os inumeráveis escritores, pensadores, diretores de cinema, músicos, criadores de todo tipo que surgiram do povo judeu? Que um grupo humano que representa menos de 0,2% da população mundial tenha dado à humanidade mais de 20% dos prêmios Nobel, entre eles alguns dos últimos, está fora de toda estatística e, certamente, de toda lógica. Chaves na literatura mundial, com alguns eventos no século XX que marcaram a fogo gerações inteiras — com Marcel Proust à frente —,
também foi a contribuição judaica a que assentou as bases do pensamento moderno. A anedota resume isso de forma magnífica: um dia, um judeu subiu a montanha e, ao retornar, assegurou: "Deus é a verdade, e a verdade está na lei". Chamava-se Moisés. Séculos depois, outro judeu asseverou: "A verdade é Deus, e Deus é amor". Chamava-se Jesus. Depois apareceu outro que, sem amor divino, declarou que a verdade era o dinheiro. Era um tal de Karl Marx. Depois chegou Freud e situou a verdade algo mais abaixo do bolso, na parte crucial entre as pernas. E, para fechar o círculo, apareceu o judeu Einstein e varreu tudo: "A verdade é relativa". Nada da filosofia, da matemática, da física, da medicina, da literatura, da música, nada relevante no terreno do pensamento, da ciência e da criação pode-se explicar sem a extraordinária contribuição do povo judeu. E sempre foram muito poucos. E sempre foram perseguidos como ratos.

Fator X? Lá estávamos, numa sala cheia, com gente pelos corredores e o chão servindo de cadeiras, tentando dar resposta a um enigma particular. O historiador Joan Culla analisou a contribuição política, Xavier Torrens se atreveu com a criatividade, Vicenç Villatoro com a literatura, eu apurei algumas idéias sobre a contribuição ao pensamento, o rabino Ariel Edery batalhou com a superação na adversidade e, com a ajuda de Jaime Huberman, que nos acolheu nesse espaço de liberdade e cultura que são as pessoas do Bet Shalom, saíram algumas idéias apresentáveis. Este é o aperitivo de uma reflexão coletiva apaixonante e, com certeza impossível. O fator não é genético. No povo judeu há de tudo, como em todas as farmácias, desde cérebros brilhantes a gente de limitada ambição mental, mesmo que a porcentagem de gênios esteja fora de toda curva estatística. O fator não é religioso, já que parece que os deuses só iluminam os caminhos quando alguém acende as velas. Tampouco parece ser um fator histórico, ainda que a carga pesada de sua difícil história tenha conformado um instinto sobrenatural de superação. Xavier Torrens falou do valor do estudo. Não em vão, os judeus foram durante séculos, o único povo de nossa cultura que era alfabetizado. Mas também estudam os fundamentalistas do Paquistão, de maneira que o fator diferencial não é estudar, porém o que se estuda... Pessoalmente, situei a questão na singular cultura libertária e antidogmática de um povo que inclusive discute com seu próprio Deus, povo do livro, vinculado à palavra e à reflexão. Foram eles que, há milhares de anos, escreveram um código de leis que ainda marca as pautas atuais da convivência. E foi o rabino Edery quem selou a reflexão. Talvez o fator X seja a vida judaica, o conjunto de valores que caracterizam suas complexas amarras culturais, nas quais, a veneração pela vida, a superação individual e o compromisso com a cultura têm sido seu fato diferencial durante séculos. Sem dúvida, não é insignificante o esforço econômico que Israel dedica à pesquisa científica e médica — num país que se vê obrigado a gastar 60% de seus recursos com a defesa —, mas isso só explicaria o fenômeno nas últimas décadas. Que fique este dado para contra-argumentar alguns ódios: 50 anos de petróleo e recursos ilimitados, dezenas de países e milhões de pessoas, não deram um só prêmio Nobel ao mundo. 50 anos de Israel, com escassa população e recursos limitados, deram mais de uma dezena.

Este arti
go não pretende responder ao enigma, mas me pareceu interessante traçá-lo, inspirada por aquela feliz tarde de verão. E nem tanto para animar a busca das respostas, como para recordar que quando falamos dos judeus, falamos da cultura, do pensamento, da ciência. Nenhum povo contribuiu tanto sendo tão pequeno. Entretanto, o principal não é o agradecimento. O principal é repetir, insistentemente as maldades do preconceito e do desprezo.




Pilar Rahola: El País. Madrid
Tradução: Szyja Lorber

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