sábado, 19 de dezembro de 2009

Cada Um Tem Seus Mortos.


      O título deste post pode parecer um pouco estranho, mórbido, mas logo se entenderá o porque.
Dia 17/12 foi o dia da haskaráh (aniversário de falecimento) do meu avô materno. Segundo nosso costume, o costume judaico, nesse dia acendemos uma vela de 24 h para que ela seja o sinal entre nós (os vivos) e D´s de que não esquecemos nossos mortos e mesmo depois desta separação física, continuamos respeitando o mandamento de "honrar pai e mãe" através da nossa lembrança e recordação.
Os mais religiosos também cumprem vários atos neste dia com o intuito de recordar seus falecidos. Durante a reza no Beit Knésset, aquele que está realizando uma haskaráh costuma recitar o Kadish (reza da santificação do Nome de D´s) dos Enlutados, nas três rezas do dia. Há muitas congregações e tradições que também permitem ao "enlutado" também ofereça uma refeição, ou um pequeno "banquete" em memória do falecido. Assim, o nome daquele ente querido é recordado num momento de alegria e regozijo, e sempre reconhecendo o juízo divino como infalível e justo, afinal sempre cremos que tudo ocorre segundo a vontade ou a permissão de D´s!
Por uma série de fatores eu somente acendi a vela de 24 h pela memória de meu avô, sem cumprir todas as demais tradições, mas o mais importante é que permiti a mim mesmo recordar esse nobre homem que permitiu, de maneira indireta, que eu estivesse aqui hoje.
Meu avô era de horigem judaica pela mãe e italiano pelo pai. Como era costume entre os latinos naquela época, ele levava somente o nome do pai, Lifôncio. Chamava-se Nérico Lifôncio. Por parte de mãe, tinha o mesmo sobrenome da família da minha avó, Hätchuel ou como eles o pronunciavam, Rochuel.
Meu avô era filho único e sua mãe faleceu quando ele ainda era criança. Assim ele teve uma infância muito difícil, muito sofrida, já que muitos pais naquela época não estavam preparados para assumir uma paternidade sozinhos.
Eu não me recordo exatamente como as coisas se passaram para ele, mas me parece que ele foi sendo criado pela parentela, um pouco numa casa, um pouco noutra, e sempre tendo que trabalhar duro, desde muito cedo para "pagar" pela comida e pela estadia.




Neste vídeo você pode ver imagens da região onde meus avós viviam e onde eu passei quase que todas as minhas férias e feriados escolares. Um paraíso!



De modo geral, a vida não era nada fácil naqueles tempos, ainda mais para eles, que haviam optado por viver longe das grandes cidades, nos campos, da agricultura e da criação de pequenos animais. O trabalho era pesado e a necessidade de ter que fazê-lo não respeitava chuva, sol, frio, calor ou os perigos que a densa mata atlântica oferecia.
Assim meu avô foi crescendo, um homem terrívelmente honesto e reto, mas sem saber e conhecer o que era o afeto, o toque, o amor, o carinho. Ele somente sabia fazer uma coisa, trabalhar.
Lembro-me de uma vez em que ele, já bastante idoso, teve que tratar de uma galinha que estava entrando em "choco", e eles não queriam. O problema é que quando as galinhas entram em choco, elas ficam violentas, ou "brabas". Todos nós morríamos de medo da galinha e quando meu avô viu que ninguém se encorajava a fazer o trabalho, ele se aproxima do ninho, enfia  a mão por debaixo da galinha e a segura pelos pés para tirá-la de lá, no que ao tentar se defender, a galinha lhe bica as costas da mão, arrancando pedaços de pele. Meu avô, impassível, segue seu trabalho, amarra os pés da galinha e a entrega para minha avó. Nós, os netos, estávamos estarrecidos e chocados pelos ferimentos na mão dele, mas ele dizia que não sentia nada e não tinha dor. Hoje eu sei perfeitamente que lhe doia muito, mas era um homem que tinha se acostumado com a dor e o sofrimento.
Mas se meu avô era assim frio e rude, não era porque fosse um homem mau, mas simplesmente ele não conheceu outra maneira de ser. Ele dava ao demais o que ele havia recebido. Mas mesmo ele sabia, as vezes, expressar um mínimo de afeto.
Praticamente todas as minhas férias foram passadas com meus avós. Eles tinham uma grande propriedade numa cidade do interior do litoral sul paulista. Uma cidade que ainda hoje é pequena, mas naquela época era minúscula. Todos se conheciam e tudo era muito perto. Meu avô, como produtor, era conhecido de todos os comerciantes da cidade e por eles sempre muito bem tratado. A fama de homem honesto, reto e trabalhador que não se envolvia em confusões já lhe permitia regalias. Recordo-me de uma das tantas vezes em que ele me pôs sobre a garupa de sua bicicleta e fomos ao centro da cidade. Por todos os comércios que passávamos me era oferecido doces, balas e bebidas. Quando não era uma "oferta da casa", meu avô la me comprava, e eu era feliz!
Seu Nérico era um homem muito inteligente. Sabia carpintaria, todas as tecnicas de plantio, ferramenteiro, construtor, artesão e como não podia deixar de ser naquela época, pescador e caçador. Com  ele aprendi a pescar, plantar, beneficiar diversos produtos do campo, construir ferramentas e móveis e atirar. No alto das paredes das casas de meus avós, sempre haviam muitas espingardas. Umas pequenas e fracas (para os passarinhos) e outras pesadas e fortes (para a defesa e a caça de animais grandes). Ainda me recordo como se fora ontem, quando dei o meu primeiro tiro, auxiliado pelo meu avô, contra um tronco de árvore. Depois aprendi a recarregar os cartuchos, com pólvora, papel, chumbo e mais papel ou cera para selar. Trabalho perigoso.
Mas, bem antes disso, a meu avô gostava me pôr sentado sobre seus tornozelos e me balançar pra frente e pra trás cantando uma antiga melodia que dizia "serra, serra, serrador, serra o papo do vovô". E assim eu era feliz!
Agora um pouco de seu lado mais difícil. Seu Nérico era um homem duro, de uma moral antiga e dura, inflexível e patriarcal. Ele acreditava que sua autoridade era absoluta e inquestionável, e seu relacionamento com os filhos nos anos 60 foi difícil e desgastante.
Logo depois dos meus quatro anos, meu avô adoeceu gravemente, nunca mais vindo se recuperar. Aí ele se torna uma pessoa amarga e desgostosa. Para ele era inaceitável não trabalhar, não ocupar-se dos negócios, depender de terceiros... e com o tempo ele foi morrendo, mais pelo desgosto do que pela doença em si.
Depois de longos e sofridos tratamentos e internações, chegou um dia em que ele regeitou receber medicação e tratamento. Os médicos tentaram obrigá-lo e pediram a minha avó que o convencesse a mudar de atitude. Mas quem poderia dobrar aquele homem que tinha a vontade moldada nas mais difíceis lições e sofrimentos da vida? Sua aparência dava impressão de debilidade, mas a força de vontade ainda era tão grande e forte quanto nos tempos em que enfrentara a mata, os rios, animais selvagens, o calor do verão ou o frio do inverno em campo aberto. E foi assim. Se negou em receber tratamento, para, segundo ele, morrer com a pouquíssima dignidade que ainda le retava. Foi uma questão de dias, e minha avó recebeu o comunicado ainda de madrugada de que Seu Nérico tinha falecido.
17 de dezembro de 1987. Eu tinha 12 anos, e porquê estava viajando, distante, não pude acompanhar o sepultamento.
Mesmo assim, depois disso, todos os anos, pelos próximos 10 anos, acompanhei minha avó ao cemitério para render homenagem a esse homem, duro, enérgico, "brabo", mas de um valor e uma honestidade imensurável. Foi um homem correto a tal ponto que em um casamento de mais de cinquenta anos, nunca houve sequer rumores de aventuras ou coisas parecidas por parte dele. Sempre que viajava a negócios, a Santos, e tinha que quedar-se mais de um dia, fazia questão de levar um filho ou filha para o acompanhar e assim jamais pudessem falar algo contra seu nome. Sempre dizia que era melhor emprestar do que pedir emprestado e que o homem que levanta cedo não pede pão na casa do vizinho.
E assim foi. A casa dos meus avós sempre foi uma casa respeitada, bem falada e um lugar onde sempre os mais necessitados e apurados tinham onde encotrar auxílio.
Nosso contato foi pouco, mas pude aprender muito com meu avô. Que D´s cuide de sua alma. Amén!

 Nérico Hätchuel Lifôncio ז"ל
27 kislev 5748

Imagens dessa Mata Atlântica que meus avós tanta amaram e admiraram.

Um comentário:

  1. Existe algo errado com seu blog ! você não permite comentários ? Acredito que deve estar a esconder alguma coisa.

    Deixe os comentários livre, sera mais apreciável de nossa parte.

    Camilo Pereira, Lisboa

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